Em noite de Halloween e à falta de sessões comemorativas desta data, deixo-vos um relato do grande João Benard da Costa (director da Cinemateca e, muito provavelmente, quem melhor escreve sobre cinema neste país) sobre uma prática já extinta das noites de Lisboa, e que seria interessante tentar recuperar no futuro. Desta vez no Porto, cidade que tanto celebra o cinema de Terror!
"Sempre gostei de filmes de terror. Aliás o cinema foi sempre coisa do diabo, como muito bem viram santos padres, do tempo em que os havia. Quando o comboio dos Lumière chegava à gare de Ciocat, a assistência não batia palmas, mas desandava a correr, para não ser esmagada pelo imparável avanço da máquina. Mais tarde, desataram a fugir os que ouviram rugir, pela primeira vez, o leão da Metro, bem convencidos que o animal não demorava a saltar-lhes
Houve uma altura em que os prosélitos desse culto tiveram em Lisboa templo e tempo especiais. Foi pouco antes do 25 de Abril e era às sextas-feiras, à meia-noite, no Politeama.
Chamava-se mesmo «Meias-noites de Terror», e a sala enchia-se com uma fauna especial, cultivada e recrutada nas redondezas (do Intendente ao Socorro). Fazia parte dos rituais não começar por dar parte fraca e partir para a expedição céptica e galhofeiramente. Pela mesma razão que faz de casas mortuárias e de casas de passe lugares privilegiados para engraçadinhos e ataques de riso, os dez minutos anteriores à sessão eram o mais alvar espectáculo que já me lembro de ter ouvido. Gritos, uivos, estridências de soprano ligeiríssimo ou cavidades de baixo fundo. E o que faltava às gargantas era compensado por todos os órgãos ruidosos que temos.
(...) Depois da meia-noite, a sala mergulhava no mais religioso silêncio só se manifestando – com nova algazarra – em dois casos: quando as copias (habitualmente estafadíssimas) davam mais saltos do que o habitual; ou quando, nos momentos de maior tensão, um desconhecedor das regras voltava com uma piada, que já não fazia parte do «filme». Os «xius!» eram então trovoada condigna do começo e rapidamente remetiam o importuno ao seu devido lugar.
Foi como cinéfilo que comecei a frequentar essas meias-noites, das primeiras que se fizeram
É preciso explicar que o género (morta a série B e os grandes anos 50) andava pelas ruas da amargura sem ter reconquistado ainda as cartas de nobreza que Exorcistas e Tubarões lhe voltaram a dar (algo ambiguamente) na segunda metade dos anos 70. Descendentes de Val Lewton ou George Pal, do Monstro da Lagoa Negra ou da Tarântula, do Monstro dos Tempos Perdidos ou do Homem do Planeta X, só esses sobreviveram, tratados com os pés da crítica bem-pensante.
(…)
Em todo o caso, uma época findou com essas meias-noites de terror que não sobreviveram ao 25 de Abril. Presumo que muitos dos espectadores se tenham deslocado paulatinamente umas dezenas de metros para cima, do Politeama para o Olímpia, e de Peter Cushing para Marilyn Chambers, a deusa do porno.
Às vezes suspeito que é nessas salas, marcadas a X, que está ainda pelo menos do lado da plateia, o único terror que continua o antigo. Mas sou bem capaz de estar a ser levado por excesso de noites e excesso de fantasmas."
in "Os filmes da minha vida / Os meus filmes da vida - Vol.I" de João Benard da Costa
1 comentário:
É bom ter vivido e agora recordar toda a vivência, todo o ritual dessas noites "ingénuas" de Lisboa.
Vivi essas "noites de terror". Tinha iniciado há pouco os meus 20 anos e essas sessões foram uma pedrada no charco da monotonia exaustiva e sonolenta de um certo tradicionalismo e conservadorismo que "habitava" as noites de Lisboa. O texto retrata perfeitamente aquilo que eu vivi. Nascido e criado no velho Bairro da Mouraria - Socorro, partia da casa da namorada (Castelo) cerca das 11,30 em direcção à rua das Portas... (do sonho e da aventura) e... quando as luzes se apagavam... a poesia começava. Obrigado
PS.- Eu penso que se chamava “Terror à Meia-Noite” e também quero recordar Christopher Lee
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