Berço do cinema nas mãos dos shoppings
Manuel Vitorino
"O Porto da"Invicta Filmes" e do nascimento da sétima arte já teve quase 50 cinemas em diferentes locais da cidade. Hoje, os portuenses só vêem a arte das imagens em dois shoppings no Dolce Vitta, nas Antas, e no Cidade do Porto, à Boavista. Neste último, pairam ameaças de encerramento devido ao facto da produtora "Medeia Filmes" recusar suportar os "custos exorbitantes" da exploração cinematográfica. "Se fechar, só vemos filmes americanos com pipocas e o cinema europeu ficará nas prateleiras", disseram , ao JN, vários cinéfilos.
Um mês. É o tempo que resta para a "Medeia Filmes" (de Paulo Branco) negociar a dívida das rendas em atraso com a administração do shopping Cidade do Porto. Caso não cheguem a um consenso, as quatro salas desenhadas pelo arquitecto Manuel Graça Dias poderão fechar portas. Entretanto, corre um abaixo-assinado de protesto, já subscrito por várias pessoas, entre as quais os cineastas Manoel de Oliveira eFernando Lopes e o fotógrafo francês George Dussaud.
"Assumimos as dívidas, mas queremos renegociar o contrato de arrendamento. As rendas são excessivamente caras. Só através de uma percentagem de bilheteira podemos suportar as despesas. Somos uma âncora deste espaço comercial e os cinemas dão uma caução cultural", lembrou António Costa, representante da Medeia no Porto. "Temos um compromisso escrito para ser respeitado. Ou os cinemas continuam ou os espaços serão ocupados com outras funções. Todos os cenários são possíveis", respondeu Marlene Silva, porta-voz da Bonaparte, empresa gestora do "Cidade do Porto".
Neste filme feito de vários episódios, algumas personalidades ligadas à indústria cinematográfica lamentam o fecho dos cinemas tradicionais e entendem tal fenónemo como uma relação de causa e efeito com as alterações aos hábitos dos consumidores, à mudança de paradigma e ao modo de ver cinema.
Desertificação da Baixa
"O negócio do cinema diversificou-se e transferiu-se, também, para os DVD. O cinema enquanto espaço físico funcional dilui-se na grande oferta dos centros comerciais", nota o crítico António Roma Torres. "A desertificação da Baixa também acelerou o fecho de muitos cinemas da cidade", reforçou o cineasta Luís Vilaça, autor de vários filmes, entre os quais "Acordar com o Douro em Casa".
André de Oliveira e Sousa, que esteve mais de 20 anos à frente da Federação Portuguesa de Cineclubes, não tem dúvidas quanto ao "inevitável" fecho dos cinemas, já que, em sua opinião, o mercado é dominado pelas "majors" americanas que, por sua vez, controlam a produção, exibição e distribuição."Está tudo nas mesmas mãos. O cinema enquanto manifestação artística não pode estar submetida às leis do mercado. Copiem os bons exemplos do antigo ministro da Cultura de França [Jack Lang] e sejam criativos".
"As salas dos shoppings têm mais conforto e qualidade técnica, mas todos eles exibem os mesmos filmes. Não tenho nada contra os filmes americanos, mas detesto ver cinema com pipocas nos ouvidos", disse, ao JN, o cineasta amador Aurélio Costa. A mesma opinião foi partilhada por Alves Sousa, ex-dirigente do Cineclube do Porto"Existe menos exigência por parte dos espectadores. Dantes, havia o culto do cinema,agora é entendido como uma mercadoria", lembrou. Na cidade de Aurélio Paz dos Reis - um pioneiro do cinema português dos primórdios do século XX -, a posição de "quase monopólio" da indústria cinematográfica americana cria "perplexidade e tristeza" aos apreciadores de outro tipo de cinema: "Os grandes distribuidores são grandes exibidores. O negócio é cada vez mais global, mas ainda acredito na possibilidade de ver filmes europeus", admitiu António Roma Torres.
Cinemateca adiada
Mais céptico, André de Oliveira e Sousa lamentou outras perdas além do possível encerramento das salas do shopping Cidade do Porto criticou o "esquecimento" dos poderes públicos face à extensão da Cinemateca Portuguesa na Invicta e a "crescente atrofia cultural" da cidade. "Se os cinemas da Medeia fecharem nunca mais vamos ter a hipótese de admirar filmes importantíssimos da história do cinema. A cultura ficará mais empobrecida", acrescentou, para logo lembrar alguns filmes exibidos à margem dos circuitos comerciais como "A Vida Íntima de Martin Frost", cujo argumento foi escrito por Paul Auster, ou "As Minhas Noites São Mais Belas Que os Vossos Dias", do polaco André Zulawski, com a bela Sofia Marceau.
Enquanto o "day after" não não chega, resta-nos aguardar, na próxima semana, a estreia de "Paranoid Park", de Gus van Sant (prémio especial no último Festival de Cannes) e esperar que o único espaço a compatibilizar lazer negócios e cultura continue de portas abertas.
"Considero lamentável fecho das salas"
"O cinema português nasceu no Porto e morreu no Porto", disse, ao JN, o cineasta Manoel de Oliveira, 99 anos, uma vida inteira a filmar, a propósito do anunciado fecho das salas da Medeia Filmes, no shopping Cidade do Porto. "Ando dentro e fora. Tenho mais coisas a fazer, mas considero lamentável o fecho das salas. Vejo com muita mágoa este fim", revelou. Sem tempo a perder, o cineasta fez, sucessivamente, nos últimos anos, "Espelho Mágico", "Belle Toujours" (uma homenagem a Buñuel ) e ainda rodou, em 2006, "O Improvável não é Impossível" e "Encontro Único", obra de três minutos exibida no último Festival de Cannes. Este ano, já terminou "Cristóvão Colombo - o Enigma" e já trabalha noutro projecto. Sua maior amargura a Câmara do Porto não ter resolvido o impasse da Casa-Cinema Manoel de Oliveira, à Foz do Douro, cujo projecto arrasta-se há oito anos. Prestes a completar 100 anos, o autor de "Aniki Bóbó" dá-nos uma lição de vida e exemplo de grande sabedoria: "Não sei se morro antes de acabar ou se acabo antes de morrer", costuma dizer aos amigos. O próximo filme segue dentro de momentos.
Foi vender rebuçados e ficou no "Batalha" para sempre
Cândido Silva, Projeccionista
O cinema, qual fábrica de sonhos, povoa-lhe a alma e os sentidos. Entrou pela primeira vez no cinema Batalha, quando tinha sete anos. "Vim cá [ao cinema] para vender rebuçados. Tinha nove anos e aos 17 entrei como aprendiz de projeccionista", diz. Esteve ao serviço da empresa Neves & Pascaud, onde pontificou o engenheiro Luís Neves Real, um homem bom e amigo do cineclubismo. Agora, aos 69 anos, continua a colocar as bobines dos filmes na velhinha máquina "Preboste", uma relíquia italiana comprada, nos anos 40, ao cineasta Manoel de Oliveira e diz continuar a "gostar muito" deste ofício feito de segredos "A minha vida continua a ser vivida como no filme "Cinema Paraíso" [a obra-prima de Giuseppe Tornatore]. Já projectei quilómetros de celulóide. Lembro-me de exibir obras do Viscontti, Fellini, Vittorio de Sicca. Tenho comigo as imagens de "Ladrão de Bicicletas", confessou. Existem, porém, outros filmes na memória: "Os filmes de Cecil B. de Mille atraíam multidões, as salas estavam sempre cheias", disse, sem esquecer recordações antigas, episódios pontuados pelo autoritarismo: "Antes do 25 de Abril, os filmes eram vistos pela censura, mas muitas vezes, os censores vinham às estreias e sentavam-se nas salas. Quando não gostavam de algumas cenas, vinham ter comigo para fazer cortes. Aconteceu isso várias vezes. Era uma vergonha", resumiu.
Esteve 50 anos a vender bilhetes no Coliseu do Porto
José Augusto Morais, Ex-empregado de bilheteira
Esteve 50 anos ao serviço do Coliseu do Porto. Fez várias coisas, mas a maior parte da sua vida profissional foi ocupada a vender bilhetes para os espectáculos ocorridos naquela "sala de visitas da cidade". Agora, quando falta um mês para festejar 80 anos, diz "estar um pouco cansado". Ao JN, deu conta das "grandes noites de glória", mais os amigos que teve oportunidade de conhecer, sem esquecer o cinema, essa arte das imagens e testemunho da história. "Antigamente, os grandes filmes bíblicos tinham muita aceitação. Por exemplo, o "Cleópatra", com actriz Elisabeth Taylor, foi visto por milhares de espectadores. Dantes, as pessoas iam mais vezes ao cinema e faziam fila para comprar bilhetes", lembrou.
Aconteceram, entretanto, outras enchentes de especial significado, espectáculos únicos e de grande simbolismo, entre os quais, o bailado de Rudolf Nureyev e Margot Fontain "Quando a sala foi marcada, pensei que ia ser um fiasco. Pura mentira. Um mês antes, já os bilhetes estavam esgotados. Foi uma loucura. Tivemos de fazer um espectáculo extra", contou. Entre o passado e o presente, José Teixeira Morais tem outras confidências para partilhar: "Vim embora do Coliseu de um dia para o outro. Disseram-me que já não era preciso. Na altura, fiquei triste. Depois tentei adaptar-me à nova realidade. Lembro-me com muita saudade os amigos que fiz no Coliseu", concluiu."
in Jornal de Notícias (24/11)